quarta-feira, 21 de maio de 2008

Visão Holística: Resgatando o elo perdido...


Pré-história

O sistema nervoso tal como o conhecemos hoje surgiu há cerca de 30.000- 35.000 anos; os seres que como nós o apresentam são ditos Homo sapiens ou simplesmente homens modernos. Nossos ancestrais mais próximos, chamados Homo sapiens neanderthalensis (homens antigos ou arcaicos), que viveram entre 130.000-35.000 anos, tinham um sistema nervoso diferente e conseqüentemente, uma mente diferente. Em outras palavras, assim como se admite, em relação ao gênero Homo, mudanças significativas no sistema nervoso (a mais óbvia relacionada ao aumento do tamanho docérebro), também se admite uma evolução da mente e, especificamente, da consciência humana.

Para Richard E. F. Leakey, um dos maiores paleontologistas do século XX, uma atividade humana plena de consciência e que às vezes deixa a sua marca no registro arqueológico é o sepultamento deliberado dos mortos; isto porque nesta atividade podemos identificar claramente uma percepção da morte e, portanto, uma percepção do eu. Na história humana, o primeiro indício de sepultamento deliberado, “é o sepultamento neanderthal há não muito mais que 100 mil anos (...). Antes de 100 mil anos atrás, não há indício de qualquer tipo de ritual que pudesse indicar consciência reflexiva”. A ausência de tais indícios, contudo, como bem destaca este autor, não corrobora a hipótese da ausência de consciência, mas também não permite que seja acrescentada como apoio à existência da consciência. Leakey ainda deixa claro que esta não é, provavelmente, “a primeira mente humana” – o Homo erectus provavelmente tinha uma consciência reflexiva altamente desenvolvida (sua complexidade social, grande tamanho cerebral e uma provável habilidade lingüística, apontam para isso).

Assim, ao se perguntar quando, na pré-história humana a mente atingiu o estágio que ora experimentamos, a resposta, para Leakey, é em alguma época nos últimos 2,5 milhões de anos (período relacionado com a própria evolução do gênero Homo e com a origem de um cérebro maior). Voltando a atenção para os “humanos como nós” (sapiens moderno), a literatura refere a descoberta de crânios trepanados4 datados entre 7.000 e 20.000 anos, encontrados em vários continentes. Na falta de evidências documentais, pode-se apenas supor os motivos (terapêuticos? ritualistas?) para estas operações: tais especulações admitem que a tentativa consciente do homem de combater a doença é tão antiga quanto a própria consciência e que a medicina se originou de práticas mágicas e sacerdotais.

Antigüidade

Entre as mais antigas informações escritas sobre o sistema nervoso, destaca-se o papiro descoberto no Egito por Edwin Smith, no século XIX. O documento foi escrito em cerca de 1700 a.C., possivelmente pelo médico egípcio Inhotep, mas admite-se que ele se baseie em textos mais antigos, provavelmente do Antigo Império (cerca de 3000 a.C.). Esse papiro é um verdadeiro
tratado de cirurgia e contém a descrição clínica detalhada de pelo menos 48 casos com os respectivos tratamentos racionais e prognósticos (favorável, incerto e desfavorável). Vários desses casos são importantes para a neurociência, pois neles se discute o encéfalo (o termo aparece pela primeira vez neste documento), as meninges, o líquor, e a medula espinhal. O papiro Edwin Smith, contudo, constitui exceção. No cômputo geral, ainda por mais de dois mil anos, as concepções médicofilosóficas giraram em torno do empirismo e do sobrenatural.

Na antiga Grécia, a medicina era inicialmente dominada pelos filósofos cientistas e as discussões giravam em torno do problema corpo-alma. A partir do século V a.C. estabelece-se a diferenciação entre medicina e filosofia, e a “etiologia” da doença deixa de ser mitológica e passa a ser percebida em termos científicos. Para todos esses pensadores gregos, contudo, a saúde exigia
a harmonia do corpo e da alma.

Entre as idéias defendidas, destacamos: a de Pitágoras (580-510 a.C.), que admitia que no encéfalo estava situada a mente, enquanto no coração localizavam-se a alma e as sensações; a de Alcmeon (cerca de 500 a.C.), que descreveu os nervos ópticos e investigou os distúrbios funcionais do encéfalo, considerando-o a sede do intelecto e dos sentidos; a de Hipócrates (cerca de 460-370 a.C.), que discutiu a epilepsia como um distúrbio do encéfalo, e o considerava como sede da inteligência e das sensações (tese cefalocentrista); a de Platão (427-347 a.C.), que considerava o encéfalo como sede do processo mental e julgava a alma tríplice, sendo o coração a sede da alma afetiva, o cérebro da alma intelectual, e o ventre da concupiscência (apetite sexual); a de Aristóteles (384-322 a.C.), que admitia ser o coração o centro das sensações, das paixões e da inteligência (tese cardiocentrista), enquanto o encéfalo tinha como função refrigerar o corpo e a alma; e a de Herófilo (335-280a.C.), médico de Alexandria, que efetuou grandes avanços anatômicos, estudando com minúcias, entre outros, o sistema nervoso central e o periférico.

Idade Média e Renascimento

Já durante o período pré-medieval, a medicina de Cláudio Galeno, (cerca de 130-203), teve enorme projeção, mantendo-se incontestada durante mais de mil anos, tendo influenciado toda a Idade Média e até mesmo após o advento renascentista. Embora médico de gladiadores, o que lhe permitia investigar as conseqüências de lesões na medula e no cérebro, a maior parte de
suas idéias sobre o funcionamento cerebral humano derivava de suas cuidadosas dissecações em animais.

Para Galeno, o encéfalo era formado de duas partes: uma anterior, o cerebrum e uma posterior, o cerebellum. Galeno deduziu (corretamente) que o cerebrum estava relacionado com as sensações, sendo também um repositório da memória, enquanto o cerebellum estava relacionado com o controle dos músculos. Os nervos eram condutos que levavam os líquidos vitais ou humores, permitindo que as sensações fossem registradas e os movimentos iniciados.

A doutrina humoral atingiu o seu apogeu na teoria de Galeno, mas admite-se que tenha sido elaborada pela escola hipocrática a partir da idéia présocrática de que o mundo era constituído de 4 elementos inalteráveis, que formavam a raiz de tudo: terra, ar, fogo, e água. Esses 4 elementos, por sua vez, eram dotados de 4 qualidades, opostas aos pares: quente e frio, seco e úmido (a terra era fria e seca, o ar quente e úmido, o fogo quente e seco, e a
água fria e úmida). A transposição deste conceito para o comportamento/temperamento humano deu origem à concepção dos 4 líquidos essenciais (sangue, fleuma, bile amarela – pituíta, e bile negra – atrabílis) que, quando em equilíbrio e harmonia (eucrasia) asseguravam a saúde do indivíduo, enquanto a doença era devida ao seu desequilíbrio e desarmonia (discrasia).

Assim, segundo a predominância de um ou outro desses 4 humores, tinha-se o indivíduo otimista, falante, irresponsável (tipo sanguíneo); calmo, sereno, lento, impassível (tipo fleumático); explosivo, ambicioso (tipo colérico); introspectivo, pessimista (tipo melancólico). As expressões “bom humor”, “mau humor”, “bem humorado”, “mal humorado”, são reminiscências dos conceitos de eucrasia e discrasia.

Este é o princípio da psiquiatria e da teoria química aplicada às atividades cerebrais. A partir da morte de Galeno, o conhecimento médico sofreu um processo de decadência qualitativa e quantitativa. Nesta decadência, dois fatores merecem ser destacados: primeiro, a ampla aceitação da doutrina cristã de que o corpo tinha pouca ou nenhuma importância em comparação com a alma (daí os estudos que tinham por objeto o corpo serem considerados desprezíveis
e indignos); segundo, a crença (a princípio rejeitada pela Igreja, mas depois absorvida por aqueles que professavam a religião), de que “a forma humana simboliza a estrutura do Mundo Maior, que o microcosmo é construído nos moldes do macrocosmo, que o homem é um epítome do Universo”.

Daí porque o esquema do homem zodiacal, no qual os signos do zodíaco eram escritos primeiramente ao redor e depois sobre as várias partes do corpo que se supunha que governassem, estava entre os produtos mais comuns da época.

Dada a manutenção da estreita relação da medicina com as correntes filosófico-religiosas predominantes, a leitura de Aristóteles que, de início, era condenável pela Igreja, acabou por elevá-lo à culminância de fonte de conhecimentos comparável à Bíblia; e os escritos de Galeno que, sob muitos ângulos encerravam fundo religioso acentuado, foram aceitos e mantidos como
dogmas.

Em outras palavras, o pensamento médico ocidental durante a Idade Média, tentou ajustar as doutrinas biológicas e médicas de Aristóteles e Galeno aos ideais da Igreja. Daí, por exemplo, as câmaras ventriculares do cérebro, descritas por Galeno, terem sido ajustadas à idéia do corpo como abrigo natural da alma, dando suporte à chamada hipótese de localização ventricular (doutrina ventricular). O número de ventrículos, igual a três, representando a Santíssima Trindade, ajustava-se ao sentimento religioso reinante, ou seja, destacava o esforço de munir a fé de argumentos racionais, de promover a conciliação entre a fé e a razão, aceitando a noção das funções cerebrais localizadas nos ventrículos (achando-se na célula anterior as sensações, na média o pensamento, e na posterior a memória).

A partir do final do período medieval, teve início um movimento cultural caracterizado pelo estudo de obras gregas e romanas até então desconhecidas. Esse movimento cultural coincide com o Humanismo, parte do que hoje chamamos de Renascença ou Renascimento.

Iniciado na Itália, a intensa renovação artística e cultural produzida neste período garantiu, entre outros, um grande avanço no estudo da anatomia humana graças principalmente, às obras de Leonardo da Vinci (1452-1519) e Andreas Vesalius (1514-1564), que contribuíram de forma decisiva. A observação e a extraordinária habilidade técnica de Da Vinci, representada
por meio de seus desenhos anatômicos, destacam este autor como criador da ilustração médica. Em relação ao sistema nervoso, sua mais notável contribuição foi a realização de moldes dos ventrículos cerebrais (a partir da injeção de cera líquida aquecida, que se solidificava após refrigeração). Tornou-se evidente, então, que não eram três, mas quatro os ventrículos cerebrais
(dois laterais, um em cada hemisfério cerebral, o terceiro, localizado na altura do tronco
encefálico, e o quarto ventrículo, localizado na altura docerebelo). Os maravilhosos desenhos de Da Vinci, no entanto, permaneceram ignorados durante cerca de 300 anos e o homem celebrado como pai da anatomia foi Vesalius que, em 1543, publicou sua obra monumental De humani
corporis fabrica libri septem, dividida em sete volumes, freqüentemente referida como Fábrica, considerada uma das obras mais importantes já publicadas. Além de representar um marco na história da medicina, este livro tem alta significação como obra de arte − não apenas pelos estudos terem sido feitos em cadáveres humanos (rompendo a tradição imposta por Galeno de
estudar a anatomia nos animais para transplantá-la para o homem), o que assegurava a
qualidade da expressão corporal de suas figuras, mas pelo fato de ser um dos primeiros exemplos de ilustrações impressos com fundo panorâmico tirado do natural.

Séculos XVII e XVIII

Durante a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII, o problema corpo x alma motivou vários pesquisadores na proposição de novas interpretações; tais idéias, contudo, tinham como característica principal o fato de que se baseavam em especulações e não em observações clínicas ou experimentais. Uma das teorias melhor conhecida é a de René Descartes (1596-1650); esta teoria admitia que a alma (denominada res cogitans, “a coisa pensante”) era uma entidade livre, não substantiva, imaterial, indivisível e o corpo (res extensa, “extensão da coisa”) uma parte mecânica, material, divisível.

Embora diferentes, a alma interagia com o corpo por meio da glândula pineal, que também funcionava como centro de controle. Assim, no conceito cartesiano, a alma (o espírito) transcende o corpo e este é matéria dotada de movimento, como uma máquina. Esta teoria provocou uma dissociação mente e corpo e os indivíduos passaram a se identificar com a sua mente racional e não com o organismo, surgiram então as expressões “corpo sem alma”, “alma sem corpo”, e “de corpo e alma” (completamente, inteiramente).

A afirmação “penso, logo existo” (em francês, “je pense, donc je suis”), publicada por Descartes, em 1637, na obra O discurso do método e depois, em 1644, na obra Princípios de Filosofia (em latim, cogito ergo sun). A referida citação afirma o oposto daquilo que ele acredita ser verdade acerca das origens da mente e da relação entre a mente e o corpo. Isso porque o conhecimento atual sobre o desenvolvimento filogenético (entre espécies biológicas), e ontogenético (em uma espécie biológica; no caso, Homo sapiens) permite-nos compreender que muito antes do aparecimento da humanidade, os seres já eram seres.

O surgimento de uma consciência elementar e com ela uma mente simples, que com uma
maior complexidade possibilitou o pensar e, mais tarde o uso de linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos, é anterior ao surgimento dos humanos modernos. Mesmo no presente, quando viemos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos por existir, e só mais tarde pensamos,“existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser”.

A crença de Descartes em uma mente separada do corpo, uma mente desencarnada, contribuiu para alterar o rumo da medicina, ajudando-a a abandonar a abordagem da mente-no-corpo que predominou de Hipócrates até o Renascimento, e moldou a forma peculiar como a medicina ocidental aborda a investigação e o tratamento da doença (prática médica). Como resultado, as
conseqüências psicológicas das doenças do corpo, propriamente dito, as chamadas doenças físicas, são normalmente ignoradas ou levadas em conta muito mais tarde; mais negligenciados ainda são os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo. Ainda, a idéia cartesiana da mente separada do corpo explica porque ainda hoje muitos investigadores em psicologia se julgam capazes de entender a mente sem nenhum recurso à neurobiologia (“psicologia sem cérebro”) ou porque para muitosneurocientistas a mente pode ser perfeitamente explicada em termos de fenômenos
cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social (ignorando também que o próprio meio é um produto das ações anteriores do organismo).

Século XIX

O século XIX foi, entre outros, marcado pelo nascimento da biologia e pela revolução de idéias decorrentes da teoria da seleção natural proposta pelo naturalista Charles Robert Darwin (1809-1882). A concepção de mente, enquanto atributo supremo e divino do ser humano, fortemente marcada pelo dogma e poder religioso, deixava os vapores etéreos para se encarnar no sistema nervoso humano. A descoberta de que o córtex cerebral, até então considerado
homogêneo do ponto de vista funcional, apresentava áreas anatomicamente definidas, deu suporte à idéia de que diferentes funções mentais estavam alojadas nas diferentes porções do córtex. O mais ilustre e provavelmente o primeiro proponente da localização cerebral das funções mentais foi o austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828). Gall acreditava que o cérebro
era na verdade um conjunto de órgãos separados, cada um dos quais controlava uma “faculdade” (aptidão) inata separada. Originalmente, Gall postulou a existência de 27 “faculdades afetivas e intelectuais” (entre elas, benevolência, agressividade, sentido da linguagem, amor parental);
este número foi posteriormente aumentado. O desenvolvimento de uma determinada
“faculdade” causava uma hipertrofia na zona cortical correspondente; esta zona hipertrofiada exercia pressão sobre a calota craniana, produzindo neste local uma pequena saliência óssea. As funções pouco desenvolvidas ou ausentes produziam, ao contrário, uma depressão na superfície craniana.

Assim, pelo processo da cranioscopia (apalpação das proeminências) o praticante da Frenologia poderia determinar a natureza das propensões do indivíduo. E como as “faculdades” se encontravam em áreas circunscritas, essas idéias deram origem à chamada corrente localizacionista (e ao conseqüente surgimento dos mapas frenológicos). Descartada a partir de meados do século XX enquanto procedimento científico, a Frenologia, ainda hoje apresenta muitos adeptos. Quem nunca ouviu as expressões “cabeça chata” e “testa baixa”; elas se mantêm de uso corrente e são usadas no cotidiano para denotar pouca inteligência ou mesmo características de sujeitos de “raça inferior” (numa clara alusão preconceituosa).

Gall estabelecia a função a partir do sintoma, isto é, se a lesão de uma determinada zona do cérebro causava perturbação de um determinado comportamento, isto se devia ao fato desta atitude ter sua sede nesta região. Admitir que cada parte do córtex cerebral tem uma função diferente deveria permitir, por exemplo, que se provocasse deficiências comportamentais
específicas por meio da remoção de porções circunscritas desse córtex; com o intuito de testar essa hipótese, muitos cientistas começaram a provocar lesões cerebrais em animais de laboratório e a observar suas conseqüências. Estes experimentos marcaram o nascimento
da neurociência experimental que conhecemos hoje. Entre os opositores do localizacionismo, merece destaque o fisiologista francês Marie-Jean-Pierre Flourens (1794-1867); este acreditava que as funções mentais não dependiam de áreas particulares do sistema nervoso, mas
que este funcionava como um todo, de modo orquestrado, integrado. Suas idéias anteciparam a noção de equipotencialidade (plasticidade neuronal), isto é, a capacidade de outras partes do cérebro assumirem funções do tecido neural lesado e deram início ao movimento que resultou na corrente holista (não localizacionista, unitarista) da função cerebral.