quarta-feira, 23 de julho de 2008

A Doutrina Humoral de Galeno



A Medicina Internacional do séc. II ao séc. XV

Depois de Hipócrates, destaca-se um vulto importante: Galeno de Pérgamo (séc. II d.C.). Nasceu em Pérgamo, na Ásia Menor. Estudou filosofia e medicina e viajou pela Alexandria, Grécia, Itália, etc. Exerceu a sua parte profissional em Roma, como médico de gladiadores, o que lhe deu bons conhecimentos cirúrgicos, e a possibilidade de testar algumas das suas teorias no vivo (nomeadamente na ortopedia e sistema nervoso).

Embora não fosse religioso, a sua obra prespassa espiritualidade nas descrições anatómicas e fisiológicas, o que justifica a adopção das suas teorias pela Igreja até ao fim da Idade Média: considerava o Princípio da Finalidade – que justificava as funções dos órgãos. Toda a estrutura teria sido concebida e pensada para uma determinada função, e assim tudo resultava pela intervenção de um ser superior (“o instrumento da alma é o corpo”, para ele se criaram os órgãos, e as partes do corpo são suas servas humildes).

Como não era possível a dissecção do cadáver humano, recorre aos animais, e isto justifica as incorrecções que se lhe apontam. Fazia as suas demonstrações na praça pública no porco, o animal que considerava mais semelhante ao Homem. O seu tratado mais famoso “De usum partium” - Do uso das partes, no entanto, foi estudado até ao Renascimento. Também observou e descreveu a anatomia dos fetos, mas com erros, por fazê-lo naqueles que tinham morrido com alguma variação fatal.

Galeno ainda não tinha ideia da circulação fechada do sangue, mas compreendia que este se movimentava. Considerava que seria feito no fígado, era levado ao lado direito do coração, passava aí para o lado esquerdo através de uma comunicação interventricular e entrava finalmente na aorta para todo o corpo. Os pulmões eram simples reservatórios de ar, cuja função seria refrescar o sangue que se queimava no coração de pois de temperar o calor animal em todas as partes do corpo. Esta é a explicação que vigorou até ao fim da Idade Média.

Em termos de fisiologia fez algumas descobertas importantes por experiência in vivo nos animais: demonstrou a função dos ureteres na condução da urina (com a sua laqueação ela não aparece na bexiga); a responsabilidade do nervo recorrente na produção da voz (cortando-o, verifica-se a sua extinção); o pulso (com uma pena de ave introduzida na artéria, que oscilava com a pulsação) – por isso alguns o chamam de pai da fisiologia experimental. Estas experiências foram repetidas no séc. XIX por Claude Bernard, com os mesmos resultados.

Para Galeno, a saúde dependia dos 4 humores (Escola Hipocrática, de Cós), mas adoptou também o Pneuma (influência da escola pós-hipocrática Pneumática) – acabam por ser cinco os humores para Galeno.

Criou uma polifarmácia muito rica, com três remédios muito ricos e usados durante séculos, como a triaga ou teriaga.

Em relação à terapêutica, a figura mais importante desta época foi Dioscórides, como já foi falado, que apareceu entre Hipócrates (IV a.C.) e Galeno (II d. C.).

A Idade Média, o período entre o séc. V e XV, foi um período em que não se deu grande evolução em termos de Medicina. Nele foram três as entidades mais importantes na preservação da Medicina greco-romana:

A Medicina de língua árabe: com o seu movimento no sentido do Oriente levou consigo a tradição greco-romana. Mais tarde voltam, com o objectivo da expansão do Islão para o Ocidente, trazendo de novo a medicina greco-romana, com novas características, para além dos seus conceitos médicos.

Aqui vemos uma imagem de três grandes figuras da Medicina, que serão tidas como referência durante largos séculos, mesmo cá em Portugal: Hipócrates, Galeno e Avicena – este último (séc. X d.C.) é considerado o expoente máximo da medicina árabe.

Utilizavam muito as plantas, na alquimia e farmacologia.

A anatomia árabe é galénica, não a aprofundaram pois era incómodo o contacto com o cadáver.

Tinham um instrumental fabuloso: Albucassis, no séc. IX d.C. escreve o primeiro catálogo de instrumentos cirúrgicos. Aqui temos um cautério, muito utilizado pelos árabes para as mais variadas intervenções, mas especialmente no tratamento dentário.

A massagem era muito cultivada.

A Medicina monacal – os mosteiros e conventos espalhados pelo Ocidente centralizavam os elementos que leccionavam e exerciam medicina. A cópia permanente dos textos greco-romanos permitiu a sua conservação.

O mosteiro mais conhecido era a Abadia de Monte de Cassino, beneditino (de combóio, a duas horas de Roma. Era interessante o intercâmbio entre este mosteiro e uma escola médica laica próxima, em Salerno. Infelizmente foi bombardeado durante a Segunda Guerra Mundial. Ao saber desta intenção com algumas horas de antecedência, uma parte do espólio ainda foi salvaguardado noutros locais, mas constituiu uma grande perda de património documental, artístico e arquitectónico.

Também em Portugal, no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, se preservou o saber greco-romano.

No entanto, a introdução natural de erros pela cópia sucessiva vai criar, no Renascimento, a necessidade de ir às fontes originais.

A Escola de Salerno (+- séc. X d.C.).

É a mais antiga Faculdade de Medicina da Europa, reflexo das escolas itálicas pré-hipocráticas. Centro importante de estudo médico e tradução, era laica mas com relações com a Abadia de Monte de Cassino.

Agora, o símbolo da Medicina é um bastão e uma serpente. No entanto, na Idade Média era este um vaso de urina – a uroscopia era fundamental. O doente entrava no Hospital, dirigia-se ao Banco ou Urgência, que era a “Casa das Águas”, e lá, pela observação do aspecto, pelo cheiro ou sabor da urina, se ordenava ou não o internamento.

Como já foi dito, um requisito para o tratamento médico era que o doente se confessasse, e a arquitectura das enfermarias possibilitava o acesso diário a serviços religiosos. Os problemas da saúde física e espiritual eram tidos como um só. De lembrar que os hospitais não tratavam só doentes, mas também peregrinos, pobres e crianças abandonadas. Havia também zonas diferentes para mulheres, homens, crianças, doentes mentais (cujos tratamentos procuravam já humanizar).

A cesariana era primeiramente efectuada quando a mãe estava já morta, como recurso último para salvar o feto. Este era imediatamente baptizado.

Antes da generalização da dissecção, muitas especulações interessantes eram feitas: julgava-se por exemplo que o útero teria várias “câmaras” à direita e à esquerda. O lado do qual fosse concebido e desenvolvido o novo ser é que determinava o seu sexo. Os casos raros de hermafroditas ou de “intersexo” não teriam sido concebidos numa das “câmaras”, mas no meio.

Na Idade Média, o médico vestia-se a rigor quando em contacto com doenças epidémicas: com um chapéu e uma máscara com bico. Não sabiam que existiam micróbios, mas tinham a consciência do contágio, procurando o isolamento dos doentes e executando outras medidas por causa dos “miasmas” inaláveis que “andavam no ar”.

Foram poucos os que, nesta altura, tiveram a coragem de fazer dissecção anatómica no cadáver. Vários elementos do Clero a praticavam inicialmente, mas foi proibida por ser uma mutilação do corpo humano, e só mais tarde novamente permitida. Vemos desta época representações do cadáver que, além de estar inteiro, parece ter vida, dormindo serenamente. Muito diferente da representação anatómica realista dos séc. XVI e XVII, reflexo do maior contacto e número de dissecções praticadas no cadáver.

Um exemplo disto é a evolução da representação do feto no útero materno: inicialmente eram homens em miniaturas de braços abertos, mas com Leonardo da Vinci, que tudo retratou fielmente, já se vêem na posição fetal e com as proporções correctas.

É curioso que Leonardo não deixou a sua obra em livro, e por isso não se pode dizer que foi responsável pelo primeiro Tratado de Anatomia, mas sob a forma de apontamentos soltos, em que desenhava e escrevia. Também escrevia ao contrário: da direita para a esquerda.

A partir do séc. XV, com a invenção da imprensa, há uma divulgação de todo o tipo de informação. Através do texto e imagens impressas se deu mais facilmente a conhecer a anatomia e fisiologia humanas, o que significou um avanço notável em termos de ensino e prática da Medicina.

No Renascimento, a imagem parece ganhar vida: lembrem-se do “Esqueleto Pensante” (no teatro anatómico) do Tratado de Vesálio, o pai do renascimento anatómico.

A nomenclatura anatómica tem o seu início em Homero (séc. X a.C.), na Ilíada, com a medicina grega; para ela contribui depois Galeno. Mas só a partir do séc. XVI, com o interesse generalizado pela anatomia e a frequente dissecção anatómica, ganhou forma a anatomia sistemática, com o aparecimento de numerosas descrições com o nome do anatomista que a fizera. Até há 50 anos ainda se usavam todos estes epónimos!

Neste século a dissecção chegou a ser pública, e explorada como um espectáculo.

No séc. XVII, com a invenção do microscópio e o aumento do poder de resolução, novas estruturas microscópicas são também descobertas.